Pesquisa sobre a modulação do sistema endocanabinóide, coordenada pela bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq e professora de Neurobiologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Lucianne Fragel Madeira, poderá contribuir para o avanço no tratamento da retinose pigmentar, forma mais comum de cegueira hereditária na população, que afeta 1 em cada 4 mil pessoas, e que, em estágio avançado, pode levar à perda total da visão. O objetivo do estudo é o de avaliar a possibilidade de uso do sistema endocanabinóide para impedir a perda da função visual ou, ao menos, amenizar a progressão da doença. O endocanabinóide é um complexo sistema de sinalização celular presente em humanos e em animais, que envolve os ligantes canabinóides produzidos pelo próprio corpo, seus receptores e suas enzimas de síntese e de degradação. Descoberto no início da década de 1990, esse sistema produz moléculas que têm semelhança estrutural com as encontradas na planta Cannabis sativa, cujos efeitos medicinais não relacionados às suas propriedades psicoativas já são conhecidos.
A pesquisa se encontra na fase pré-clínica, mas seus resultados já podem ser observados e são considerados promissores. “Nosso dado mais marcante é o efeito protetor robusto que observamos após aumentar a disponibilidade de anandamida na retina, um canabinóide produzido naturalmente pelo organismo. Além disso, nosso grupo já observou que vários componentes desse sistema estão alterados nos animais que possuem essa degeneração da retina, mostrando que os canabinóides estão agindo ativamente no curso da retinose”, afirma a professora Lucianne Madeira. A pesquisa possui financiamento do CNPq e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (FAPERJ).
Para avaliar se é possível impedir a perda da função visual ou, ao menos, amenizar a progressão da retinose pigmentar por meio do sistema endocanabinóide, os pesquisadores utilizam o modelo animal de retinose pigmentar, trabalhando com camundongos RD10. Esses animais têm modelo de retinose pigmentar muito semelhante à dos humanos, com lenta degeneração de células fotorreceptoras. Os experimentos realizados pelos pesquisadores conseguiram retardar nos camundongos a morte dos fotorreceptores dos olhos em cerca de 40%. “Como é uma doença que não tem cura, por conta de ser uma doença genética, de caráter hereditário, é muito difícil de tratar porque cada um pode ter um gene defeituoso. Então, por causa disso, os tratamentos que visam retardar a doença são promissores no sentido que a gente pode trazer uma melhora na qualidade de vida do paciente”, comenta a professora Lucianne Madeira.
Uma pessoa afetada pela doença demonstra os primeiros sinais da enfermidade na adolescência. O problema se inicia com a morte do fotorreceptor. Há uma mutação em um determinado gene que passa para outras células da retina que, a princípio, não deveriam ser afetadas. A doença se manifesta com uma dificuldade de enxergar no escuro. Com o avanço da idade, os neurônios dos olhos vão morrendo e a perda se estabelece de forma mais intensa, com o desaparecimento da visão periférica. Na idade adulta, a doença alcança estágios mais avançados. A pessoa afetada pela retinose pigmentar pode, inclusive, perder totalmente a visão, o que gera um grande impacto em sua qualidade de vida.
Segundo a professora Lucianne Madeira, os pesquisadores verificaram que existem várias alterações no sistema endocanabinóide no decorrer do desenvolvimento da doença. “Nós estamos modulando esses componentes, alterando principalmente os níveis de endocanabinóides ou de canabinóides endógenos, aumentando os níveis deles, e, com isso, a gente está conseguindo atrasar a morte dos neurônios da retina que tem retinose pigmentar”, explica ela. Os resultados apontam para um atraso na morte dos neurônios dos olhos, após o tratamento diário com um fármaco que bloqueia a enzima de degradação. No momento, o grupo estuda os mecanismos por trás do efeito protetor do tratamento, para entender o potencial terapêutico dos endocanabinóides e melhorar sua eficácia. Para tanto, os pesquisadores trabalham em colaboração com dois grupos da Universidade do Rio de Janeiro (UFRJ), em duas linhas distintas. Em uma delas, os pesquisadores desenvolvem um colírio a base de canabidiol, que será testado ainda nos animais. A segunda linha de pesquisa diz respeito à terapia gênica.
“O que a gente está propondo com a terapia gênica é a inserção de um gene ou dois genes combinados dos receptores para endocanabinóide. A gente quer ver se o efeito neuroprotetor é conseguido nesses indivíduos. Como a gente viu que tem alteração nos receptores CB1 e CB2 na retinose pigmentar, a gente quer ver se modulando mais permanentemente, através da inserção de gene, com a terapia gênica, a gente consegue prolongar esse efeito neuprotetor”, explica a Lucianne Madeira. Os receptores CB1 são encontrados principalmente no sistema nervoso central e controlam níveis e atividade da maioria dos outros neurotransmissores, regulando a atividade de qualquer sistema que precise ser ajustado, como fome ou temperatura. Os receptores CB2, por sua vez, agem no controle do nosso funcionamento imunológico, modulação de dor, contração e inflamação, e são encontrados no sistema nervoso periférico e nas células imunes.
Apesar de ainda existir preconceito acerca do uso de canabinóides, nas últimas décadas o potencial medicinal dessas substâncias vem sendo redescoberto. Ele já é conhecido desde 2700 A.C, quando surgiram os primeiros relatos, na China. “A ciência já vem dando várias respostas do uso de canabinóides”, diz a professora Lucianne Madeira. “A gente ficou durante muitos anos com esse preconceito, por conta de os fitocanabinóides estarem associados aos efeitos psicoativos da maconha que na verdade, é devido a um canabinóide que é o THC, mas não a todos os outros fitocanabinóides que a maconha tem, como canabidiol, canabigerol etc”, explica ela. Estudos científicos vêm comprovando que canabinóides que não possuem efeitos alucinógenos desempenham o papel de neuroprotetores do sistema nervoso, em pacientes com epilepsia, esquizofrenia, depressão e autismo. “O que a ciência vem mostrando é que nós podemos, com o conhecimento que vem sendo obtido ao longo das experimentações cientificas, contornar esses problemas saber como retirar essa parte ruim dos fitoterápicos e usá-los para o bem da sociedade”, ressalta Lucianne Madeira. Segundo ela, quando os cientistas passaram a conhecer o sistema endocanabinóide e a gerar novos conhecimentos sobre ele, aumentou a segurança no uso clínico dos canabinóides, sejam eles sintéticos, fitoterápicos ou endógenos. “A gente espera que nossa pesquisa seja muito promissora para uma doença genética causada por mais de cem genes diferentes”, sublinha ela, lembrando que apenas com uma pesquisa não se consegue alcançar a cura definitiva. “Mesmo que sejam tratamentos que possam retardar o avanço da doença, isso já é promissor, suficiente e deve ser estimulado”, completa ela.
Trajetória
A professora Lucianne Madeira comenta como começou a se interessar pela ciência e um pouco de sua carreira, o que também é um estímulo para as jovens que querem seguir esse caminho. Ela diz que tem curiosidade pela ciência desde criança, mas o estímulo maior para ela trilhar o caminho acadêmico partiu de um curso de férias realizado na UFRJ, quando ela estava no Ensino Médio. Foi quando ela teve o primeiro contato com laboratórios de pesquisa. Logo em seguida, ela participou de projeto como bolsista PIBIC Júnior e ingressou na graduação de Biomedicina na UFRJ, quando começou seus estudos trabalhando com desenvolvimento normal da retina. Acabou cursando doutorado direto na mesma instituição e, em 2009, passou em concurso para professora da UFF. Atualmente, ela é pesquisadora chefe do Laboratório de Desenvolvimento e Regeneração Neural da UFF. Ela também atua na divulgação e na popularização da ciência, bem como na formação continuada e sensibilização para a inclusão educacional. A professora é fundadora e diretora do programa de extensão Ciências Sob Tendas, da UFF. Ela também é membro do Comitê Científico do INCT de Comunicação Pública em Ciência e Tecnologia.