A médica sanitarista e pediatra Jorgete Maria e Silva está acostumada a esclarecer dúvidas sobre a segurança de vacinas. É uma atribuição básica do seu trabalho no Ambulatório de Reações a Vacinas (RAV), que ela coordena no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (HCFMRP) da USP. Dúvidas e preocupações são comuns há bastante tempo, relata ela, motivadas em parte pelo sucesso dos próprios imunizantes, que fizeram muitas das doenças contra as quais eles protegem parecerem coisas do passado. “As pessoas não têm mais medo da doença, elas têm medo do que o filho delas pode apresentar depois de tomar a vacina”, diz a pediatra.
A situação piorou muito nos últimos anos, ressalta ela. Além das preocupações cotidianas sobre febre, dores e eventuais contraindicações de um determinado imunizante, começaram a surgir medos infundados sobre o risco de as vacinas alterarem o DNA, afetarem a inteligência, causarem infertilidade ou até mesmo a morte de crianças. “Começou com a da covid, mas acabou extrapolando para qualquer vacina”, relata Silva. Quase sempre, segundo ela, a fonte da desinformação são as redes sociais; e nem sempre os médicos conseguem mudar a percepção dos pacientes. “As fake news ganharam uma força muito grande”, lamenta a médica. “O que a gente fala de correto não suplanta o que as pessoas veem nas redes sociais.”
O relato dela ao Jornal da USP está em sintonia com os resultados de uma pesquisa realizada no início deste ano pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), em parceria com o Instituto Questão de Ciência (IQC), com mais de 980 pediatras, que apontou as mídias digitais — em especial, as redes sociais — como principal fonte de hesitação vacinal entre as famílias atendidas por esses profissionais. “Estamos falando de um fenômeno que tem uma dependência muito grande dessas estratégias de comunicação”, disse o coordenador do levantamento e professor de Psicologia Social da Universidade de Brasília (UnB), Ronaldo Pilati. “As pessoas estão passando muito tempo dentro dessas plataformas, consumindo muita informação e produzindo atitudes com base nisso.”
Reconhecido mundialmente pela excelência de seu Programa Nacional de Imunizações (PNI), criado em 1975, o Brasil passou a registrar, desde 2016, uma queda “acentuada e perigosíssima” das suas taxas de cobertura vacinal, alerta o presidente da SBP, Clóvis Constantino. Um problema que, segundo ele, foi agravado por várias razões na pandemia — entre elas, a desinformação sobre a segurança das vacinas da covid-19.
Apesar da ótima cobertura conquistada nas doses iniciais de vacinação contra a covid em adultos, apenas 11% das crianças menores de 5 anos estavam devidamente imunizadas (com duas ou três doses vacinais) contra a covid-19 até agosto deste ano, segundo dados enviados à reportagem pelo Observatório de Saúde na Infância da Fiocruz.
“As crianças estão completamente descobertas”, diz a farmacologista Soraya Smaili, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenadora do Centro de Estudos Sociedade, Universidade e Ciência (SoU_Ciência). “Infelizmente, no caso da vacinação infantil, acho que a desinformação venceu. E não sabemos exatamente como reverter isso”, lamenta ela. Mais de 3.500 crianças e adolescentes morreram de covid-19 no Brasil até o fim de 2022, segundo dados oficiais do Ministério da Saúde. Nos primeiros seis meses deste ano, foram registrados 80 óbitos e mais de 2,7 mil hospitalizações por covid em crianças menores de 5 anos, segundo o observatório da Fiocruz. No grupo de 1 a 4 anos, a média nesse período foi de uma morte por covid por semana — um número altíssimo para uma doença que pode ser evitada pela vacinação desde os 6 meses de idade.
O temor maior dos especialistas, agora, é que essa hesitação se espalhe para outros imunizantes. “Estamos diante de um panorama muito perigoso”, que pode resultar no ressurgimento de várias doenças infecciosas de altíssimo risco, como a pólio e o sarampo, alerta Constantino. A cobertura vacinal como um todo no Brasil caiu para 68% em 2022, comparado a mais de 95% em 2015, segundo números oficiais do DataSUS.
Na avaliação do pesquisador Cristiano Boccolini, do Laboratório de Informação em Saúde (LIS) da Fiocruz, essa queda da cobertura vacinal no Brasil, de uma forma geral, está fortemente relacionada, também, a um processo de desorganização da atenção primária à saúde. No caso da vacinação contra a covid-19 em crianças, porém, o impacto da desinformação foi “especialmente cruel e muito mais impactante”, segundo ele. Discursos antivacina que sempre estiveram presentes no País “ganharam um porta-voz” na figura do presidente Jair Bolsonaro e de outros membros do alto escalão de seu governo — inclusive no Ministério da Saúde —, que sistematicamente questionavam a segurança das vacinas e minimizavam o risco da doença para crianças. “Os movimentos contra a vacinação ganharam muito mais potência com isso”, avalia Boccolini, que também é responsável pelo Observatório de Saúde na Infância da Fiocruz. “O resultado é esse que estamos vendo agora.”
Diante desse quadro, fica a pergunta: Quem ganha com isso? Qual é o interesse que alguém pode ter em disseminar informações falsas que colocam a vida e a saúde das pessoas em perigo?
A origem do movimento antivacina no mundo remonta ao início de 1998, quando o médico britânico Andrew Wakefield publicou um trabalho na revista médica The Lancet sugerindo que a vacina tríplice viral — que protege contra sarampo, rubéola e caxumba — poderia causar autismo. O estudo era uma falácia do começo ao fim, recheado de falhas éticas, técnicas e metodológicas que invalidavam completamente suas conclusões. Entre outros problemas, descobriu-se que Wakefield havia fraudado dados e que o trabalho fora financiado por advogados que representavam famílias em processos contra fabricantes de vacinas. O artigo acabou sendo retratado (revogado) e várias pesquisas realizadas desde então já comprovaram por A mais B que não existe nenhuma ligação entre vacinas e autismo. O movimento antivacina que foi gestado pela polêmica, porém, virou um monstro negacionista-conspiratório de sete cabeças que cientistas, médicos e autoridades sanitárias lutam até hoje para derrotar.
No Brasil, o sucesso do PNI e a atitude majoritariamente positiva da população em relação às vacinas nunca permitiram que esse movimento se estruturasse de forma tão relevante. Até que veio a pandemia de covid-19, com Jair Bolsonaro na presidência da República, e as vacinas — assim como as máscaras, o distanciamento social e praticamente todas as medidas preconizadas pela ciência como necessárias para o enfrentamento da covid-19 — foram engolidas pelo fogo da discórdia política.
Nas palavras da professora Marie Santini, diretora do Laboratório de Estudos de Internet e Mídias Sociais (NetLab) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a pandemia promoveu um “grande encontro do negacionismo científico com a indústria da desinformação”, em que interesses econômicos, políticos e ideológicos se misturaram num grande caldeirão de notícias falsas e teorias da conspiração sobre a covid-19 e tudo mais que acontecia no País naquele momento.
“A pandemia desnudou algo que já estava acontecendo, mas que não tínhamos ideia do tamanho nem da complexidade da ameaça que iríamos enfrentar”, avalia Soraya Smaili, referindo-se ao uso das plataformas digitais (redes sociais e aplicativos de mensagens) para a propagação sistemática de desinformação e discursos de ódio contra cientistas, universidades e outras instituições públicas de pesquisa que se contrapunham ao negacionismo científico do governo federal.
Reitora da Unifesp — instituição responsável por coordenar os testes clínicos da vacina Oxford-AstraZeneca no Brasil — até maio de 2021, Smaili passou a pandemia combatendo dois vírus simultaneamente: o da covid-19 e o da desinformação. “Foi uma coisa assustadora, que pegou a gente de surpresa”, relata ela. “Ficou evidente que há um esquema ultraprofissional por trás dessas redes de mentira e difamação, utilizando ferramentas de comunicação que nós, cientistas, ainda não dominamos.”
“Passamos pela primeira pandemia em que a ciência avançou rápido o suficiente para desenvolver vacinas e tratamentos novos. Mas também foi a primeira pandemia em que as pessoas escolheram não se vacinar por causa de mentiras”, disse o biólogo e divulgador científico Átila Iamarino, em entrevista concedida ao canal Meio, em maio deste ano. “Criou-se todo esse movimento de desinformação e ele continua agora, ainda está organizado, muito bem articulado e tem conotações políticas. Não é porque a gente teve uma troca de governo que ele vai se desmanchar magicamente. Na próxima pandemia ou crise que depender de ciência, como já está acontecendo com mudanças climáticas, essa rede de desinformação está estruturada, financiada e azeitada para trabalhar.”