As infecções por bactérias treponêmicas, causadoras de doenças como a sífilis, já aconteciam no território do Brasil há pelo menos mil anos antes do contato com os europeus, aponta artigo publicado na revista Nature, com participação de pesquisadores do Instituto de Biociências (IB) da USP. A partir de amostras de ossos encontrados num sítio arqueológico em Santa Catarina, os especialistas identificaram fragmentos do DNA das bactérias e reconstruíram seu genoma, em descoberta que é mais um passo para entender a origem, distribuição geográfica e forma de infecção da doença – três grandes pontos de debate na ciência.
A reconstituição revelou que o genoma pertence à bactéria causadora da bejel, do mesmo gênero do agente causador da sífilis, e que havia sido descrita apenas em regiões quentes e secas da Europa, Ásia e norte da África. O resultado do estudo indica que as infecções ocorreram entre cerca de 2.000 a 2.500 anos atrás, muito antes das expedições que os europeus realizaram na América a partir do final do século 15. Além da USP, a pesquisa teve a participação das Universidades de Basileia e Zurique e do Instituto de Biociências de Lausane, na Suíça, do Museu de História Natural e da Universidade de Viena, na Áustria, das Universidades de Barcelona e Valência e Instituto de Saúde Carlos III, na Espanha.
A sífilis é uma das treponematoses – doenças causadas por bactérias do gênero Treponema, em formato de espiral (espiroquetas) – responsáveis também pelos casos de bejel (sífilis endêmica), bouba (yaws) e pinta (Treponema carateum), cujas manifestações mais evidentes são lesões na pele. Ela é uma doença infectocontagiosa, transmitida pela bactéria Treponema pallidum pallidum, por meio do contato sexual, ou verticalmente, da mãe para o feto, e através de sangue e secreções contaminadas. Caso não seja tratada precocemente, pode comprometer o cérebro, sistema nervoso, coração, ossos e pele.
Distribuição geográfica
“A origem, distribuição geográfica e forma de infecção das treponematoses vêm sendo discutidas há séculos, e envolvem três hipóteses sobre o surgimento da sífilis”, relata ao Jornal da USP o pesquisador do IB Luis Pezo Lanfranco, um dos autores do artigo. “Todas elas giram ao redor de um evento histórico específico, o retorno de Colombo da América à Europa no final do século 15 e da epidemia, que vários pesquisadores têm interpretado como de sífilis venérea, que se alastrou pela Europa no início do século 16.”
A “hipótese colombiana” sugere que a sífilis que atingiu como epidemia a Europa no final do século 15 foi proveniente das Américas, levada por Cristóvão Colombo e sua tripulação em 1493. “Ela se assenta nos dados ambíguos sobre evidências osteológicas, pesquisadas em ossos, de sífilis na Europa antes desta data, muitas vezes confundida com a lepra”, conta Lanfranco. A segunda hipótese, chamada de “pré-colombiana”, sugere que a bactéria já existia desde os primórdios da humanidade e se transformou com ajuda do clima, temperatura, meio ambiente e densidade demográfica, em outras doenças, até chegar à espécie causadora da sífilis.
“Ela teria surgido na África e seguido para a Ásia, isolou-se na América depois de sua entrada há 17 mil anos, transformando-se em sífilis há 5 mil anos e entrando na Europa apenas no século 15, de onde espalhou-se pelo mundo na forma que hoje é conhecida”, relata o pesquisador. A terceira hipótese, chamada de “Unitária”, aponta que existe apenas uma única treponematose com diferentes manifestações clínicas dependendo de diferentes condições epidemiológicas. “Neste caso a sífilis está relacionada com densidade populacional e já estava presente tanto na Europa quanto na América na época do contato dos europeus com o Novo Mundo.”
Reconstrução do genoma
Os pesquisadores reconstruíram o genoma bacteriano extraído dos ossos de pessoas sepultadas no sambaqui Jabuticabeira 2, localizado em Jaguaruna, no litoral de Santa Catarina, para testar a hipótese da existência de doenças treponêmicas na região. “Os sambaquis são sítios arqueológicos formados principalmente por restos de conchas de moluscos, ossos de peixes e sedimentos, além de artefatos e restos de fauna, também usados como cemitérios por longos períodos”, afirma Lanfranco. “As datações de Jabuticabeira 2 situam-se entre 2.890 e 1.781 anos antes do presente (AP) e os estudos realizados indicam uma relativa uniformidade no modo de vida das populações que o habitaram ao longo de quase mil anos.”
A hipótese foi formulada a partir dos estudos osteológicos realizados pelo médico José Filippini, que entre os anos 2008 e 2012 percorreu todos os museus da costa brasileira procurando sinais de treponematoses nos esqueletos dos antigos sambaquieiros, sendo descritas em sua tese de doutorado, defendida em 2012 no IB. “Em 2018, a partir do contato da professora Sabine Eggers, que estava emigrando para a Universidade de Viena, na Áustria, com Kerttu Majander e Verena Schuenemann, da Universidade de Zurique, na Suíça, amostras desses esqueletos foram enviadas para análise nos laboratórios suíços, com autorização do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)”, diz o pesquisador.
Após um par de anos de trabalho, a equipe de Schuenemann constatou a existência de DNA de treponemas nos ossos dos sambaquis.
“Através de datação pelo relógio molecular, a evolução da espécie de treponema pode ser traçada por um simples genoma de alta qualidade”. O sambaqui Jabuticabeira 2 foi investigado inicialmente pelo Projeto Arqueológico do Camacho, coordenado pelos professores Paulo De Blasis,do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP, Maria Dulce Gaspar, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e Suzane Fish, da Universidade do Arizona (Estados Unidos), entre 1997 e 2007.
Origem das doenças
“Após confirmação da presença de material genético de treponemas em 37 dos 99 fragmentos avaliados inicialmente, foram selecionadas quatro amostras para a recuperação dos genomas, que indicaram a presença de cepas de bejel, doença causada pela bactéria Treponema pallidum endemicum”, destaca o pesquisador. “A datação apontou que elas são de pelo menos 2 a 2,5 mil anos atrás, cerca de mil anos antes da chegada de Colombo ao Novo Mundo. Anteriormente, observações macroscópicas das lesões nos ossos, feitas por Fillipini, tinham levado a presumir que se tratava de bouba (Treponema pallidum pertenue) ou mesmo sífilis (Treponema pallidum pallidum), mas sem descartar a bejel”.
De acordo com Lanfranco, o resultado da pesquisa muda o que se achava consolidado sobre a prevalência de doenças treponêmicas em diversos ecossistemas. “Pelo que a teoria argumentava até agora, não era esperado encontrar bejel numa área de Mata Atlântica, acreditava-se que estava restrita a regiões quentes e secas do Velho Mundo e que a forma existente na América do Sul e região do Caribe era a bouba, mais comum em áreas úmidas”, observa. “No entanto, a discussão persistia pela alta presença de indicadores ósseos de treponematoses nas regiões secas do Deserto Costeiro do Peru e no Deserto do Atacama no Chile.”
“Esta descoberta merece uma análise mais profunda que poderia ter uma explicação em mudanças climáticas e ecológicas, assim como também na alta adaptação destas bactérias às novas condições ambientais e sociodemográficas das comunidades humanas”, comenta o pesquisador. Segundo Lanfranco, epidemias de treponematoses são mais comuns em épocas de alta densidade populacional, especialmente nos últimos 600 anos, e os sambaquis têm sido teorizados como populações sedentárias densas. “O método genômico confirmou que as infecções por treponemas já existiam muitos anos antes do contato com os europeus, hipótese defendida por especialistas sul-americanos desde o início do século 20 a partir de análises ósseas. Certamente, no futuro, genomas mais antigos apresentarão resultados semelhantes a este”.
Texto: Júlio Bernardes/Jornal da USP