Um problema global, responsável direta e indiretamente por seis milhões de mortes no ano de 2019, mais do que a Aids e a Malária. O dado do relatório Global burden of bacterial antimicrobial resistance in 2019: a systematic analysis, publicado no The Lancet, diz respeito a infecções causadas por bactérias resistentes a antibióticos e leva em consideração o fato de as pessoas estarem morrendo de infecções comuns, anteriormente tratáveis. Com a pandemia que se seguiu e com as pessoas se submetendo a toda espécie de tratamento, o cenário negativo foi intensificado.
Uma alternativa para esse problema é o desenvolvimento de novos agentes antibióticos. Foi o que fez um grupo de quatro pesquisadores do Departamento de Farmácia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Eles usaram um peptídeo nativo do escorpião, a Stigmurina, e realizaram mutações pontuais em regiões específicas. Essas transformações geraram 31 peptídeos diferentes, chamados de análogos, com carga e polaridade que favorecem a ligação mais potente deles a membranas bacterianas de importância médica. As características permitem potencializar as atividades antimicrobiana e anti câncer da substância, presente na glândula de peçonha do escorpião Tityus stigmurus (escorpião amarelo), amplamente encontrado no Nordeste brasileiro.
Matheus de Freitas Fernandes Pedrosa, pesquisador responsável pela coordenação e supervisão dos estudos, explica que essas “sequências peptídicas” foram promovidas por meio de estudos de bioinformática, com amplo uso. “A aplicabilidade dessa descoberta científica se dá tanto na medicina humana quanto na veterinária. Esses novos peptídeos são, tecnicamente, moléculas obtidas a partir de ferramentas computacionais que apresentaram, por análise in silico e posteriormente in vitro, ação antibiótica e antiproliferativa superior à molécula nativa do escorpião”, relata.
O cientista defende que essa concessão de patente tem um impacto também educacional, além de científico. Para ele, temos o estigma de que animais peçonhentos são totalmente nocivos aos seres humanos e a outros animais. A situação faz com que a sociedade não olhe para eles com a perspectiva de explorá-los por meio de seu veneno. “Essa substância possui moléculas que podem salvar vidas e curar doenças”, enfatiza.
A nova tecnologia foi objeto de pedido de patente no ano de 2015 e recebeu, do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), a concessão definitiva de patenteamento no último dia 12, sob a denominação Peptídeos análogos da Stigmurina com atividade antibiótica e anti proliferativa e sua aplicação em formulações farmacêuticas. Alessandra Daniele da Silva, uma das cientistas envolvidas na pesquisa, identifica que, até mais do que 2015, o cenário atual requer mais novos peptídeos nessa perspectiva – um exemplo é a ampla incidência do crescimento anormal do número de células (situação que ocasiona casos de cânceres) em todo o mundo.
“Essas moléculas multifuncionais surgem como uma fonte promissora para a obtenção de novas alternativas terapêuticas por mostrarem elevada ação contra diferentes linhagens de células cancerígenas em cultura celular, com ação superior ao peptídeo nativo. Estudos experimentais realizados por nosso laboratório, com parte das moléculas depositadas nessa patente, têm de fato mostrado elevada ação antibacteriana contra diferentes”, descreve a pesquisadora.
Além de Matheus e de Alessandra, o grupo de inventores é formado, ainda, por Andréia Bergamo Estrela e Adriana Marina e Silva Parente. O processo do desenvolvimento das novas moléculas foi realizado justamente durante o mestrado de Alessandra Daniele e Adriana Parente, ambas, na época, alunas do Programa de Pós-graduação em Ciências Farmacêuticas e do programa de Pós-graduação em Bioquímica e Biologia Molecular, respectivamente. Para Adriana, a importância acadêmica do processo de patenteamento se distribui em inúmeros pontos, entre eles a formação de recursos humanos qualificados de alunos de mestrado, iniciação científica e doutores, além da possibilidade de conferir aos inventores a exclusividade sobre a criação e a restrição do seu uso por terceiros sem o seu consentimento.
A concessão da patente é um ato administrativo declarativo, ao se reconhecer o direito do titular, sendo necessário o requerimento da patente e o seu trâmite junto à administração pública. Também chamada de carta patente, é um documento concedido pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) após análise sobre, entre outros aspectos, os requisitos de novidade, a atividade inventiva e a aplicação industrial. A carta confere a seu titular a exclusividade de uso, comercialização, produção e importação de determinada tecnologia no Brasil. A UFRN garante aos seus cientistas suporte no processo de pedido, auxiliando desde a escrita propriamente até em questões burocráticas, como a responsabilidade pelo pagamento de taxas.
Com o diferencial de ter sido aprovado em dois editais importantes no CNPq nos últimos anos, para a continuidade com os estudos dos peptídeos análogos antimicrobianos, Matheus Pedrosa pontua que, tanto o depósito como a concessão demonstram a expertise e alta qualidade da pesquisa realizada na UFRN, o que acaba sendo um braço da contribuição da Instituição para o desenvolvimento científico-tecnológico do país. Não bastasse, representam uma produção técnica importante para os programas de pós-graduação do Brasil. “Além disso, essa linha de pesquisa e inovação do grupo tem contribuído, nos últimos anos, com a publicação de artigos em periódicos internacionais com elevado fator de impacto, sendo importantes para os programas de pós-graduação em que os alunos desenvolvem suas dissertações e teses”, ressalta.
O Laboratório de Tecnologia e Biotecnologia farmacêutica (Tecbiofar) e o grupo de pesquisa possuem mais de 15 anos de experiência na investigação de moléculas com potencial terapêutico, desde a sua identificação a partir de produtos naturais (plantas e escorpiões), avaliação das atividades antiinflamatória, antibacteriana, cicatrizante, anti venenos de escorpiões e serpentes, além de antiproliferativa em estudos in silico e in vitro, até o desenvolvimento de uma formulação farmacêutica e aplicação in vivo.
O grupo de pesquisa é composto por 16 alunos, entre iniciação científica, mestrandos, doutorandos e pós-doutourando. Ao todo, as pesquisas geraram sete depósitos, dos quais três já tiveram a concessão realizada. Duas delas já foram objeto de reportagens anteriores da Agência de Inovação: Adversário das sequelas, que diz respeito à concessão Processo de obtenção de extratos, frações, compostos isolados e composições farmacêuticas de plantas Jatropha gossypiifolia, Jatropha mollissima e Jatropha curcas e sua aplicação no tratamento de envenenamentos por animais peçonhentos; e UFRN desenvolve antibióticos, referente ao depósito denominado Sequência, obtenção e aplicação de análogos do peptídeo TsAP-2 ou fragmentos ativos em formulações farmacêuticas com atividade antimicrobiana e antiproliferativa.
Atualmente no Tecbiofar, laboratório que envolve os professores do Departamento de Farmácia Matheus Pedrosa e Arnobio Antonio da Silva Junior, há a continuação da pesquisa desses peptídeos análogos na terapia antibacteriana, com o testes contínuos, e a continuação da pesquisa desses peptídeos análogos na terapia antibacteriana, com o teste contra microrganismos multirresistentes no Brasil, como parasitas e vírus, apresentando resultados positivos. Não bastasse, também ocorre o desenvolvimento de uma formulação farmacêutica associada aos peptídeos análogos. As ações ocorrem por meio de cooperações científicas com instituições francesas e brasileiras.
“Um estudo, publicado anteriormente em nosso laboratório, tem mostrado o efeito benéfico da Stigmurina no tratamento de feridas de pele infectada com bactéria em camundongos. Outra vertente importante que estamos desenvolvendo nos últimos anos é a resolução estrutural dos peptídeos análogos pela técnica de ressonância magnética nuclear, em que os peptídeos são analisados num equipamento de alta resolução na UFRJ; a estrutura terciária é resolvida em definitivo em parceria com o professor colaborador Jarbas Resende, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e com a professora colaboradora Renata Mendonça, do Instituto de Química da UFRN. A determinação da estrutura de uma molécula é uma etapa essencial para que ela se torne um novo medicamento ou auxiliar de medicamentos pré-existentes”, relata Matheus Pedrosa.
Por Wilson Galvão – AGIR/UFRN