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Quem quer ser um cientista?, por Felipe A. P. L. Costa

A pesquisa científica, em especial a pesquisa de natureza experimental, está a resolver quebra-cabeças. Um atrás do outro, em uma marcha incessante

por Equipe ACQF

Reprodução: Jornal GGN

A força do conhecimento. VI. Quem quer ser um cientista?

por Felipe A. P. L. Costa [*]

  1. SOBRE A CIÊNCIA BÁSICA.

Certas coisas que nos cercam – notadamente os grandes mistérios do mundo – parecem ter um poder hipnótico sobre a mente humana. A ponto de algumas delas se tornarem a musa inspiradora de muitos estudiosos – incluindo aí cientistas e leigos de mentes brilhantes [1].

A pesquisa científica, em especial a pesquisa de natureza experimental, está a resolver quebra-cabeças. Um atrás do outro, em uma marcha incessante. É um trabalho rotineiro e que pode se tornar enfadonho [2]. (Não surpreende descobrir que as fases puramente mecânicas ou repetitivas de uma pesquisa são frequentemente delegadas a terceiros – e.g., estudantes de pós-graduação.) O dia a dia de quem lida com quebra-cabeças científicos pode ser prazeroso (como muitas vezes o é), mas não chega a usufruir do frisson ou do glamour permanente que alguns imaginam.

Nas palavras de Kuhn (1982, p. 77-8):

“A ciência normal, atividade que consiste em solucionar quebra-cabeças, é um empreendimento altamente cumulativo, extremamente bem-sucedido no que toca ao seu objetivo, a ampliação contínua do alcance e da precisão do conhecimento científico. Em todos esses aspectos, ela se adequa com grande precisão à imagem habitual do trabalho científico. Contudo, falta aqui um produto comum do empreendimento científico. A ciência normal não se propõe descobrir novidades no terreno dos fatos ou da teoria; quando é bem-sucedida, não as encontra. Entretanto, fenômenos novos e insuspeitados são periodicamente descobertos pela pesquisa científica; cientistas têm constantemente inventado teorias radicalmente novas. O exame histórico nos sugere que o empreendimento científico desenvolveu uma técnica particularmente eficiente na produção de surpresas dessa natureza. Se queremos conciliar essa característica da ciência normal com o que afirmamos anteriormente, é preciso que a pesquisa orientada por um paradigma seja um meio particularmente eficaz de induzir a mudanças nesses mesmos paradigmas que a orientam. Esse é o papel das novidades fundamentais relativas a fatos e teorias. Produzidos inadvertidamente por um jogo realizado segundo um conjunto de regras, sua assimilação requer a elaboração de um novo conjunto. Depois que elas se incorporaram à ciência, o empreendimento científico nunca mais é o mesmo – ao menos para os especialistas cujo campo de estudo é afetado por essas novidades.”

O propósito imediato da pesquisa básica é conhecer e explicar as coisas do mundo. O que não necessariamente implica em descobrir ou inventar coisas úteis (e.g., adoçantes sem calorias, cremes faciais, plásticos biodegradáveis ou a capa da invisibilidade) [3]. A rigor, boa parte dos estudiosos que vivem hipnotizados pelos mistérios da natureza não parece estar preocupada em inventar novidades tecnológicas [4].

É fato já conhecido que novidades tecnológicas podem surgir como subprodutos da pesquisa científica. Ou como variações práticas em torno de algum tema já suficientemente esclarecido pela ciência básica, a ponto de servir agora de pilar para o trabalho de técnicos, engenheiros ou cientistas aplicados [5].

Eis o comentário de Dewdney (2000, p. 10):

“Da janela da sala de embarque posso ver nosso próximo avião. Com toda a reluzente beleza exigida pelos voos supersônicos, ele é um símbolo da tecnologia no final do século 20. Essa tecnologia, relembro a mim mesmo, depende quase inteiramente da ciência, e a ciência – em especial a ciência física – depende quase inteiramente da matemática. É como se eu fosse voar para Atenas pelo simples poder da matemática. As pás das turbinas girarão em círculos, a força de retropulsão da descarga a jato produzirá um impulso igual e contrário para frente, os componente da estrutura metálica resistirão à tensão proporcionalmente a seus cortes transversos e o fino ar da estratosfera deslizará sobre asas matematicamente otimizadas para promover a elevação, igualando exatamente a gravidade.”

Ocorre que o mérito e a importância da pesquisa básica não se resumem a esses subprodutos ocasionais. Por mais reluzentes que eles possam ser.

Equacionar e resolver problemas científicos relevantes – e ser reconhecido por isso (cientistas podem ser desligados ou até mesmo desleixados, mas eles não são desprovidos de vaidade) – são as maiores ambições que se pode almejar na ciência, sobretudo no âmbito da ciência básica [6].

Cientistas profissionais com os pés plantados na pesquisa básica nem sempre estão a pensar em recompensas materiais imediatas. Não porque sejam mais altruístas ou porque tenham um senso de coletividade mais apurado. Muitos deles simplesmente estão convencidos de que há uma recompensa muito mais valiosa e duradoura, ainda que de natureza meramente simbólica – e.g., a primazia e o reconhecimento pelas suas descobertas –, logo além do arco-íris…

FIGURA. A figura que acompanha este artigo é um retrato de Mary Somerville, de autoria de Thomas Phillips (1770-1845). Embora a palavra ciência seja usada há séculos, o termo cientista é de uso recente. Consta que apareceu pela primeira vez em uma resenha publicada anonimamente no periódico britânico The Quarterly Review, em 1834 (ver Ross 1962). O reverendo e polímata inglês William Whewell (1794-1866), autor da resenha, fez a sugestão ao escrever sobre o trabalho e o livro mais recente, On the connexion of the physical sciences (1834), da britânica Mary Somerville (1780-1872). (Ainda que de passagem, Somerville é retratada no filme Mr. Turner [2014], de Mike Leigh. Um dos poucos bons filmes que a TV Globo vive a reprisar durante as madrugadas.)

  1. QUEM QUER SER UM MILIONÁRIO?

O sonho de ter o próprio nome associado a alguma descoberta revolucionária nem sempre é o suficiente para atrair e manter jovens talentos. (Salários mais altos e prestígio social costumam ser tentações irrecusáveis.)

Fato é que os cursos de graduação na área científica (Física, Química etc.) [7] não estão entre as opções mais procuradas pelos jovens estudantes que ingressam na universidade. Não é de estranhar. Afinal, as carreiras científicas não estão entre as ocupações mais bem-remuneradas pelo mercado. (A rigor, sem planejamento e estímulos adequados, a carreira de cientista profissional dificilmente irá prosperar entre nós.)

Quais seriam então as carreiras mais procuradas?

Podemos ter uma ideia da resposta olhando para a lista das opções mais concorridas no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). Uma passada de olhos nos resultados mais recentes revela que continua havendo uma concentração em torno de uns poucos cursos, quase todos da área tecnológica, como Agronomia (e diversas outras engenharias) e Medicina (e outros cursos da área de saúde, como Odontologia e Veterinária) [8].

Por que a concentração em torno desses cursos?

Arrisco dizer que as preferências dos jovens pouco ou nada têm a ver com talento ou vocação. Muito menos com altruísmo [9].

Em muitos casos, a motivação maior é bem mais mundana: dinheiro. E prestígio. Vivemos em uma economia de mercado e o mercado recompensa melhor (e.g., em termos de remuneração e prestígio social) aquelas ocupações cujo exercício resulta em benefícios mais ou menos óbvios e imediatos [10].

Ora, pois não é exatamente isso – benefícios econômicos mais ou menos imediatos – o que visam as artes práticas?

NOTAS.

[*] O presente artigo, assim como cinco artigos anteriores (ver Livros, lentes & afins, Por que a Terra é esférica?, Revolução Agrícola, a mãe de todas as revoluções, O que é cultural, afinal? e Subindo uma rampa em espiral), foi extraído e adaptado do livro A força do conhecimento & outros ensaios: Um convite à ciência (em processo de finalização). Há uma campanha de comercialização envolvendo os livros anteriores do autor – ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para adquirir os quatro volumes (ou algum volume específico) ou para mais informações, faça contato pelo endereço meiterer@hotmail.com. Para conhecer outros artigos e livros, ver aqui.

[1] Para relatos em primeira pessoa, ver Horgan (1998). Há mentes brilhantes em toda parte – vagando pelas ruas ou encarceradas em presídios. Considere o caso do estadunidense Christopher Havens. Em 2011, ele foi sentenciado a uma pena de 25 anos. Na prisão, passou a estudar matemática por conta própria. Em 2020, publicou os seus achados em um primeiro artigo técnico – ver o artigo ‘An inmate’s love for math leads to new discoveries’, de Maria Cerruti, publicado no sítio The Conversation, em 14/5/2020. Outra coisa: notar que os termos cientista, pesquisador e estudioso (ou erudito) não são sinônimos. Outro termo que dá origem a mal-entendidos é intelectual.

[2] Na opinião de alguns, o dia a dia de um laboratório evoca o que se passa em um escritório ou na bolsa de valores – ver Latour & Woolgar (1997).

[3] Para exemplos, detalhes e discussão, ver Fisher (2004).

[4] A arena científica (sensu Zarur 1994) é um lugar altamente competitivo, sobretudo no âmbito da pesquisa básica, onde as recompensas costumam ser de natureza exclusivamente simbólica. No âmbito da pesquisa aplicada ou tecnológica, a competição é mais mundana e comezinha, pois em geral implica em dividendos materiais.

[5] Ciência aplicada não difere de ciência pura ou básica em termos de qualidade intelectual, precedência epistemológica ou prioridade histórica. A diferença é de foco: a ciência aplicada visa atender uma necessidade específica. Para detalhes e discussões, ver Losee (1979) e Bunge (1987).

[6] E mais: Não são poucos os cientistas profissionais que estão ocupados apenas e tão somente com funções administrativas, sem manter uma linha de pesquisa própria. Sobre os sistemas de recompensa e as funções exercidas por cientistas profissionais, ver Merton (1977, v. 2).

[7] Considere o caso da graduação em Física, um dos cursos universitários com maior percentual de desistências. Quando ingressei na universidade, na década de 1970, de cada 50 alunos que iniciavam o curso, menos de cinco obtinham o diploma. Transcorridos mais de 40 anos, a situação não parece ter melhorado nem um pouco. Após um ou dois anos dando murro em ponta de faca, muitos alunos de Física migram para cursos vizinhos, notadamente alguma engenharia. O fenômeno seria impulsionado por dois fatores: (1) o grau de dificuldade da graduação em Física tende a ser superior ao de qualquer engenharia; e (2) as perspectivas dos diplomados não são animadoras – e.g., a remuneração média de um físico fica bem aquém da de um engenheiro. (Vale lembrar que a profissão não é regulamentada.) Não é de estranhar que haja uma carência crônica de professores de física no ensino médio – ver Ruiz et al. (2007). Fatores adicionais, como o desestímulo à presença de mulheres na área científica, só agravam ainda mais a situação – v. matéria Inteligentes demais para serem cientistas, de N. G. Gortázar, publicada no jornal El Pais, em 2/12/2020.

[8] Embora estejam assentadas hoje em bases científicas, agronomia e medicina não são elas próprias ciências. São artes práticas milenares. Veja: Em que circunstâncias nós recorreríamos a um agrônomo ou a um médico? A rigor, não seria exagero dizer que nós só recorremos a esses profissionais em casos de necessidade. Ninguém procura um agrônomo na ânsia de entender os processos ecológicos que levam à proliferação de uma população de pragas. Recorremos porque queremos evitar a perda da safra. Assim como ninguém procura um médico com o propósito de entender os processos fisiológicos que levam à perda de moléculas de hemoglobina. Procuramos porque queremos sanar um quadro de anemia profunda. (Em ambos os casos, um bom entendimento teórico por parte daqueles profissionais pode ajudar a resolver melhor os problemas, embora tal condição não seja imprescindível.)

[9] Na maioria das vezes, declarações do tipo “Quero ser agrônomo para acabar com a fome no mundo” ou “Quero ser médica para cuidar das crianças desnutridas” são apenas frases de efeito.

[10] Estou a falar de benefícios que são medidos em escala econômica. Os mercados têm pouca ou nenhuma preocupação social de longo prazo, sobretudo em países atrasados. Também não custa lembrar que muitos dos problemas da vida em sociedade são forjados ou manipulados. Veja o mundo das leis, um cipoal de truques e sutilezas criados para manter as coisas mais ou menos do que jeito que sempre foram – e.g., os privilegiados de um lado, os desassistidos de outro.

REFERÊNCIAS CITADAS.

+ Bunge, M. 1987 [1980]. Epistemologia: Curso de atualização, 2.ed. SP, TA Queiroz.

+ Dewdney, AK. 2000 [1999]. 20.000 léguas matemáticas. RJ, J Zahar.

+ Fisher, L. 2004 [2002]. A ciência no cotidiano. RJ, J Zahar.

+ Horgan, J. 1998 [1996]. O fim da ciência. SP, C Letras.

+ Kuhn, TS. 1982 [1962]. A estrutura das revoluções científicas. SP, Perspectiva.

+ Latour, B & Woolgar, S. 1997 [1979]. A vida de laboratório. RJ, Relume Dumará.

+ Losee, J. 1979 [1972]. Introdução histórica à filosofia da ciência. BH, Itatiaia & Edusp.

+ Merton, RK. 1977 [1973]. La sociologia de la ciencia, 2 v. Madri, Alianza.

+ Ross, S. 1962. Scientist: The story of a word. Annals of Science 18: 65-85.

+ Ruiz, AI; Ramos, MN & Hingel, M. 2007. Escassez de professores no ensino médio. Brasília, MEC.

+ Zarur, GCL. 1994. A arena científica. Campinas, Autores Associados & Flacso.

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